Da Redação
Brasília – “O Acordo Mercosul-União Europeia tem que ser assinado e esperamos que seja, mas se por algum motivo o tratado não for firmado será uma grande frustração para o Brasil pois perderemos uma oportunidade para expandir e aumentar o nosso fluxo de comércio. Se o acordo for assinado, teremos meios para avançar com as negociações entre o Mercosul e a Área de Livre Comércio da Europa (EFTA na sigla em inglês). Nós temos os acordos com o Canadá e com Singapura, que foram assinados recentemente, além de outros acordos que temos que colocar em pauta”.
A afirmação foi feita pelo presidente do Conselho de Relações Internacionais (CRI) da FecomercioSP e vice-presidente da Federação, Rubens Medrano, em entrevista exclusiva via Zoom ao Comexdobrasil.com.
O processo negociador e o futuro do acordo de livre comércio entre os blocos sul-americano e europeu, o momento atual e as ações visando agilizar e modernizar o comércio exterior brasileiro, as relações entre o Brasil e a China, a participação das pequenas e médias empresas no comércio exterior foram outros temas abordados na entrevista que segue abaixo:
P: Como o senhor analisa o estágio atual do acordo entre o Mercosul e a União Europeia? O senhor acredita que o acordo será assinado este ano?
Rubens Medrano: O acordo foi concluído há quase cinco anos e ainda estamos esperando para ser assinado. Após a conclusão das negociações, a União Europeia apresentou uma “side letter” {um instrumento adicional que busca reforçar compromissos ambientais do acordo e que funciona como um anexo a um dos capítulos do tratado referente ao Comércio e Desenvolvimento Sustentável}, algo que me parece fora daquele espírito de um acordo comercial entre dois grupos que têm a amizade e a confiança mútuas. O Brasil é o principal foco dessa side letter e por isso o governo brasileiro já preparou uma resposta, que submeteu aos demais países-membros do Mercosul e que em breve será encaminhada à União Europeia.
Essa é uma questão a ser negociada. Se os europeus apresentaram uma carta rude, dura, fora dos propósitos de uma negociação comercial, é claro que o Brasil tem que se posicionar, responder e trazê-los à realidade.
Para ser assinado, o acordo terá que ser aprovado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos dos estados-membros da União Europeia e do Mercosul. É importante que o acordo seja assinado antes do final deste ano, durante a presidência espanhola da União Europeia, porque em janeiro de 2024 a Áustria assumirá a presidência rotativa da UE e o país não se mostrou favorável à assinatura do acordo. Lamentaremos se esse acordo vier a não ser assinado, porque é um acordo que vai abrir oportunidades muito grandes principalmente para a indústria nacional, mas também para os produtos do agronegócio. Temos que fazer um grande trabalho, especialmente por parte do Itamaraty, junto a países como a França, Áustria e Irlanda, que têm uma agricultura que não possui os níveis de produção que nós temos aqui no Mercosul. O Mercosul é hoje o maior fornecedor de produtos agropecuários, de proteínas como as carnes bovina, suína e de frangos e é claro que esses países se preocupam em fazer uma certa oposição ao acordo. Mas o que tem que se levar em conta é o fato de que a população da União Europeia é que será a grande beneficiária desse acordo. Da mesma forma, a população do Mercosul igualmente será beneficiada. Vamos ter acesso a produtos de qualidade a preços competitivos e em oferta suficiente para que não haja falta desses bens e nem aumentos de preços.
É importante destacar que o agricultor europeu vive de subsídios. Ele não tem uma capacidade de produção que lhe permita sobreviver sem os subsídios {concedidos pela União Europeia} e terá que entender que o acordo coloca certas limitações. No tocante à carne bovina, por exemplo, temos uma cota de 90 mil toneladas {a chamada “cota Hilton”, de cortes especiais e preços mais elevados}. Além disso, existem salvaguardas e não há interesse por parte do nosso agricultor em chegar lá {na Europa} e praticar dumping, ou preços que não estejam dentro da realidade.
P: O governo brasileiro vê com apreensão a questão das compras governamentais. Esse tópico poderá prejudicar a assinatura do acordo?
Rubens Medrano: O Brasil tem motivos relevantes para trabalhar pela assinatura do documento e apesar de levantar um questionamento em relação às compras governamentais, objeção que para mim não se justifica, o Brasil reconhece que o acordo negociado é um documento moderno, de vanguarda, e que conta com uma série de salvaguardas que poderão ser usadas. O texto negociado estabelece que 90% dos produtos do Mercosul poderão ingressar no mercado europeu com alíquota zero e em relação a alguns produtos específicos estão previstas cotas, que são consideráveis. Esse acordo é importante para o Mercosul pelos aspectos político e comercial e pelo fato de que vai mudar a mentalidade do Mercosul no tocante à assinatura de outros acordos que estão no pipeline.
P: Países como o Uruguai e o Paraguai vêem o Mercosul mais como um obstáculo do que como um aliado de suas economias e em especial do comércio exterior. O Uruguai causou grande apreensão ao anunciar o interesse em negociar, unilateralmente, um acordo de livre comércio com a China. Como o senhor avalia essa questão?
Rubens Medrano: O Mercosul tem uma tarifa alta e não se inseriu no processo global de cadeias de valor. Paraguai e Uruguai são grandes exportadores de produtos agropecuários e não possuem uma indústria de porte. São exportadores do agronegócio e importadores de produtos industrializados. E, infelizmente, o Brasil ficou atrasado no que diz respeito à modernização industrial, a chamada neoindústria e por isso hoje temos no Mercosul uma tarifa muito alta para os produtos de terceiros países e talvez a indústria brasileira não atenda em termos de modernidade o que nós conhecemos no mundo e o que os outros países estão produzindo.
O Mercosul tem que avançar, terá que se abrir, pois ficou muito fechado. O bloco assinou poucos acordos comerciais e isso nos alijou, num primeiro momento, da globalização das cadeias de valores e num segundo momento, no qual vemos que há um movimento de retorno das indústrias aos países de origem ou aos países próximos, nós perdemos mercados para o México e muitas indústrias que saíram da China em busca de outros mercados para se instalarem, infelizmente não vieram para o Brasil ou para nenhum país do Mercosul. Este é o grande problema. O Mercosul não se beneficiou dos movimentos nearshoring e friendlyshoring. Não temos cadeias de valores e a não ser na indústria automobilística, com raras exceções, não temos indústrias complementares. Na questão envolvendo a Inteligência Artificial e outras modernidades como a indústria de semicondutores, não existe nenhuma indústria nacional e nem do Mercosul que produza esses componentes e por isso somos totalmente dependentes das importações de terceiros países.
P: A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil, mas a pauta exportadora brasileira para o mercado chinês é fortemente concentrada em commodities de baixo valor agregado. Soja em grãos, minérios de ferro e petróleo respondem por quase 80% de todo o volume exportado para o país asiático. O Brasil está fadado a ser um mero abastecedor de matérias-primas da China?
Rubens Medrano: Essa é uma questão que nos preocupa. Nós não podemos, no longo prazo, estar confiantes em ter a China como grande comprador dos nossos produtos do agribusiness. Não podemos depender de um único país. Por isso é importante que novos acordos comerciais sejam firmados, de forma a permitir uma diversificação de mercados que é de nosso interesse. Temos que abrir a nossa economia e como isso poderá ser feito? Através de compensações, porque não se pode abrir {o mercado nacional} se não tiver compensações. Essas compensações vêm através dos acordos comerciais. Também existe o aspecto geopolítico e hoje temos um mundo bipolar. De um lado temos a China e, do outro, os Estados Unidos. Temos que manter uma certa neutralidade, não pender para nenhum dos lados, pois isso não é do nosso interesse, até mesmo por uma questão de tradição. A diplomacia brasileira sempre primou por ser uma diplomacia amistosa e que não radicaliza. No contexto do comércio internacional, temos que nos preocupar com essa dependência que estamos vendo do mercado chinês, não só na exportação, mas também na importação.
Outro ponto em relação ao qual temos que tomar muito cuidado com a China está no fato de que o governo chinês está investindo muito na infraestrutura. Não só na infraestrutura interna mas também na externa, através da Iniciativa Cinturão e Rota {a chamada “Nova Rota da Seda}, através da qual a China vem investindo muito inclusive aqui na América do Sul. É algo que temos que saber como administrar, não impedindo totalmente esses investimentos, mas agindo de forma a tornar competitiva a nossa indústria através da modernização ou da chamada neoindústria, além de buscar uma redução de custos entre os países do Mercosul, através da facilitação de comércio, da redução dos custos de transportes, de forma a tornar mais competitiva a indústria dos países do Mercosul.
P: Em países como Itália e Espanha, as pequenas e médias empresas têm uma participação relevante no comércio exterior. Aqui no Mercosul, essa participação é praticamente insignificante. O que pode ser feito para modificar essa situação?
Rubens Medrano: Nos países do Mercosul, o comércio internacional está muito concentrado nas grandes empresas. A ApexBrasl faz um trabalho de excelência, juntamente com o Sebrae, e nós na FecomércioSP também procuramos contribuir para a inserção das PMEs no comércio exterior. Mas essa inserção tem que ser feita de uma maneira lenta e segura porque uma empresa pequena ou média que ingressa no comércio exterior e tem um insucesso, ela não volta nunca mais. O grande mercado para a pequena e média empresa brasileiras deveria ser o Mercosul, não só pela proximidade, mas também pela questão da facilidade da língua, mas o Mercosul tem os seus problemas, que todos nós conhecemos e que não têm permitido que o bloco seja um mercado para as PMEs de seus países. Mas devemos incentivar essas empresas a buscarem sua inserção no comércio exterior, como acontece em países como a Espanha e Itália. Esse é um trabalho de longo prazo que tem que ser realizado.
P: O governo tem implantado uma série de iniciativas visando modernizar e dar competitividade ao comércio exterior brasileiro. Entre outras medidas devem ser mencionados o Portal Único do Comércio Exterior, o Operador Econômico Autorizado (OEA), os acordos de facilitação comercial e mais recentemente a Licença Flex. A reforma tributária é um passo nessa direção?
Rubens Medrano: O governo tem efetivamente se empenhado em termos de agilização e facilitação do comércio exterior e é nesse contexto que a Licença Flex se insere. A Licença Flex é uma das etapas nesse processo e entra em funcionamento de imediato para os modais aéreo e marítimo e brevemente no modal rodoviário. Hoje no comércio internacional não se discute somente a questão das tarifas, mas também temas ligados à facilitação comercial, da dinamização da logística do comércio exterior, da redução dos custos. O governo, através da Receita Federal e da Secretaria de Comércio Exterior (Secex), do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), entre outros, tem lançado iniciativas que devemos elogiar.
Com relação ao chamado “Custo Brasil”, não se trata apenas de uma questão da alta carga tributária, mas também das obrigações acessórias. A nossa legislação é conflitante e muitos a chamam de “manicômio tributário”. A reforma tributária é importante para o país e é necessária, mas é claro que precisamos de uma reforma tributária neutra. Não podemos simplificar em alguns setores e agravar em outros, em termos de demandas não acessórias, mas também no tocante à carga tributária. A reforma tributária é uma necessidade que nós solicitamos há muitos anos e tem sido postergada. Esperamos que neste ano ela finalmente aconteça.