Patricia Punde (*)
Em maio de 2006, o Brasil testemunhou o momento em que o Primeiro Comando da Capital (PCC) deixou de ser uma facção desorganizada e passou a atuar como uma estrutura institucionalizada de poder. Durante uma semana, São Paulo parou: ônibus incendiados, bases policiais atacadas, mais de 70 presídios em rebelião e ruas vazias em pleno horário de pico.
O episódio revelou um fenômeno inédito, em que um grupo criminoso foi capaz de paralisar o Estado por dentro, coordenando rebeliões, articulando ataques e, ao mesmo tempo, negociando com agentes públicos. Ali nascia a ideia prática do que hoje chamamos de Estado Paralelo: uma estrutura que imita o funcionamento do Estado formal, mas com objetivos ilícitos.
De facção a organização: a metamorfose da gestão criminal
Duas décadas depois, o PCC se consolidou como uma organização empresarial criminosa, com estrutura de governança, sucessão e divisão funcional. Relatórios da Polícia Federal estimam movimentações de mais de R$ 50 bilhões entre 2020 e 2024, um volume compatível com conglomerados econômicos médios.
A facção evoluiu de uma irmandade carcerária para uma máquina de negócios, aplicando princípios de governança corporativa, com organização, previsibilidade, sucessão e disciplina, adaptados ao submundo do crime.
A governança criminal do PCC: princípios e estrutura
O grupo opera com uma governança híbrida, que combina centralização de comando, colegialidade decisória e divisão de funções, sustentada por um rígido código de disciplina, onde os principais pilares são:
1 – Hierarquia e “sintonias”: células funcionais equivalentes a departamentos, como financeiro, jurídico, logístico e institucional;
2 – Código de conduta e enforcement: sanções severas, “tribunais do crime” e controle por reputação interna;
3 – Planejamento de sucessão: substituição imediata de lideranças, continuidade operacional e liderança colegiada;
4 – Centralização estratégica e descentralização operacional: comando coeso e execução pulverizada, um modelo de eficiência e resiliência.
Se trata de uma governança eficiente, mas ilegal, que transforma uma facção em organização perene, com vocabulário e estrutura similares aos das corporações formais.
Lavagem de dinheiro: o coração da operação
Lavar dinheiro, ocultar ou dissimular a origem ilícita de recursos, segundo a Lei 9.613/1998, é o eixo vital da sustentabilidade econômica do PCC. A facção domina as três etapas do processo (colocação, ocultação e integração), utilizando empresas de fachada, contratos reais e profissionais especializados. Hoje, reinveste em postos, usinas, fintechs, fundos e imóveis, legitimando capital e poder.
Fintechs, fundos e falhas de supervisão
O ambiente das fintechs de pagamento e investimento, sendo rápido, tecnológico e pouco supervisionado, ampliou as brechas. Uma fintech associada ao grupo movimentou R$ 46 bilhões entre 2020 e 2024, e fundos de investimento da Faria Lima receberam aportes de origem ilícita disfarçados de capital de terceiros.
Embora o Banco Central e a Unidade de Inteligência Financeira e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (UIF/COAF) tenham endurecido regras (Circular 3.978/2020, políticas de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo, e beneficiário final), a sofisticação dos mecanismos de ocultação e a captura de gatekeepers ainda superam a capacidade de detecção. O resultado é um sistema financeiro vulnerável a infiltração silenciosa e institucionalizada.
Como o PCC burla controles internos
A facção neutraliza controles públicos e privados por meio de laranjas qualificados e camadas societárias complexas, corrupção e cooptação de agentes estratégicos, fraudes contábeis pulverizadas e operações trianguladas, uso de escritórios e consultorias para suporte técnico e documental, e manipulação de preços, créditos e fretes (trade-based laundering).
O PCC utiliza as ferramentas de governança empresarial, como planejamento, accountability e gestão por resultados para fins criminosos. Sua eficiência deriva do que especialistas chamam de “governança invertida”, onde uma organização ilegal aplica lógica corporativa para perpetuar a ilegalidade.
A influência do PCC sobre o sistema público e privado
A estrutura de governança do PCC já ultrapassou os limites do crime organizado tradicional. Hoje, seus efeitos atingem diretamente a integridade das instituições públicas e a credibilidade das relações empresariais.
No setor público agentes públicos são corrompidos, cooptados ou neutralizados, especialmente em áreas de licitação, transporte, obras, logística e segurança; o grupo influencia decisões políticas, participa indiretamente de contratos e obtém informações privilegiadas sobre operações estatais; em certas regiões, o PCC substitui o Estado em funções básicas, controlando comunidades, oferecendo “proteção”, impondo regras e até mediando conflitos, sendo uma forma de governança paralela local. Quando o crime se organiza melhor que o próprio aparato público, o Estado perde legitimidade e o cidadão, confiança.
No setor privado empresas ligadas ao PCC oferecem preços artificialmente baixos, sustentados por capital ilícito, afastando competidores honestos; fornecedores e distribuidores podem integrar fluxos de lavagem sem saber; profissionais de áreas jurídicas, contábeis e financeiras, muitas vezes, ignoram os sinais de irregularidade, seja por descuido ou por conveniência. A presença do crime em ambientes formais reduz a percepção de risco, gerando uma economia paralela institucionalizada.
Governança do medo e da influência
O PCC exerce, simultaneamente, governança interna e influência externa. Internamente, opera com controle hierárquico e sucessão estruturada; externamente, com relações de poder e troca de favores que penetram o Estado e o mercado.
Essa dupla atuação cria uma rede de dependência mútua entre ilegalidade e economia formal, um sistema híbrido em que corrupção, omissão e conveniência mantêm o equilíbrio. Algumas consequências estratégicas, são:
1 – Erosão da credibilidade institucional: quando o crime se infiltra no aparato público e financeiro, o Estado perde autoridade moral e técnica;
2 – Risco reputacional sistêmico: empresas, bancos e fundos podem ser usados para lavagem, sofrendo impactos devastadores de imagem e sanções;
3 – Insegurança jurídica: contratos contaminados por capital ilícito desestabilizam investimentos e parcerias legítimas;
4 – Desigualdade econômica e descrédito social: a “eficiência criminosa” do PCC reforça a percepção de que a ilegalidade compensa, sendo um abalo ético que transcende o jurídico.
Em suma, o PCC construiu um modelo de governança que desafia o próprio conceito de soberania: atua com previsibilidade, planejamento e poder de influência, enquanto o Estado formal reage de modo fragmentado e reativo. A verdadeira ameaça não é apenas a violência, mas a institucionalização da ilegalidade como forma de poder.
Temos assim, o crime com CNPJ
O episódio de 2006 foi o início da revolução silenciosa do PCC. De facção desorganizada, se transformou em organização com governança criminal consolidada, plano de sucessão e estratégia de expansão econômica. Hoje, não precisa mais de armas para demonstrar poder, basta um contrato, um fundo ou uma fintech.
O enfrentamento ao Estado Paralelo exige transparência, rastreabilidade e integridade sistêmica. Sem isso, o país continuará convivendo com dois poderes legítimos: o Estado formal e o Estado paralelo. E como 2006 demonstrou, quando o paralelo decide agir, é o formal que para.
(*) Patricia Punder, é advogada e compliance officer com experiência internacional. Professora de Compliance no pós-MBA da USFSCAR e LEC – Legal Ethics and Compliance (SP). Uma das autoras do “Manual de Compliance”, lançado pela LEC em 2019 e Compliance – além do Manual 2020. Com sólida experiência no Brasil e na América Latina, Patricia tem expertise na implementação de Programas de Governança e Compliance, LGPD, ESG, treinamentos; análise estratégica de avaliação e gestão de riscos, gestão na condução de crises de reputação corporativa e investigações envolvendo o DOJ (Department of Justice), SEC (Securities and Exchange Comission), AGU, CADE e TCU (Brasil). www.punder.adv.br







