Brasil e a banalização do ódio (e do sangue)

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Eduardo Betinardi (*)

Nunca imaginei viver em um país em que na mesma semana, entre os meses de outubro e novembro, veria grande parcela da sociedade justificando o extermínio de milhares de crianças e celebrando a execução de um homem em situação de rua a facadas. Seres humanos divididos em “torcidas raivosas” em uma disputa insana que tem uma única meta: fazer o opositor sangrar (de preferência até a morte). É inevitável, mesmo sendo chocante, afirmar que o ódio está cada vez mais presente e natural na sociedade brasileira.

O cenário em que assassinatos cruéis podem ter um “lado positivo” para grande parte da população é prova dessa preocupante realidade. Obviamente, nestes casos, a cultura da violência é especialmente justificada quando envolve pessoas consideradas irrelevantes ou indignas para uma parcela da sociedade: cidadãos periféricos, crianças pobres, usuários de drogas, moradores de rua, criminosos ou qualquer outro perfil de pessoa que não se enquadre em um padrão tradicional.

Infelizmente, o “perfil aceitável” de uma vítima é seguido também pelos veículos de comunicação do país. Uma notícia que retrata a morte de um homem pobre, da periferia, não gera tanto engajamento, jornalístico e de público, quanto a morte de um homem rico, que mora em um bairro elitizado.

Confesso que fiquei em choque ao ver muitas pessoas aceitando e, ainda mais grave, tentando justificar a morte de milhares de crianças palestinas nos últimos dias. Obviamente, mais uma vez crianças pobres e marginalizadas. Tivemos até parlamentares brasileiros, como a deputada federal Carla Zabelli (PL-SP), tratando palestinos como ratos, em uma estética bem parecida com o regime nazista, de Adolf Hitler, que retratava os judeus europeus como o mesmo animal.

A intolerância e o desrespeito também se estendem às mortes de crianças e inocentes nas favelas brasileiras, vítimas daquelas tradicionais balas perdidas ou disparos acidentais que curiosamente acertam sempre os mesmos corpos, que igualmente são tratadas com desdém e, até mesmo, deboche. Sem contar as manifestações nas comunidades, quando você viu a morte de uma criança da periferia, causada por policiais, causar comoção nacional?

Para boa parte da população brasileira, as mortes de inocentes, desde que não ocorram em bairros ricos, são um preço que temos que pagar pela ineficiente guerra contra o crime organizado, que há décadas tem um único resultado: sangue. Infelizmente, mais uma vez a imprensa brasileira comprou esse conceito desumanizado.

Essa despreocupação com o próximo é um reflexo de como a violência e a falta de humanidade se tornaram banalizadas em nosso dia a dia. A aparente indiferença diante desse tipo de notícia é uma clara evidência de como a empatia e a compaixão estão se tornando valores cada vez mais frágeis em nossa sociedade. Hoje, o pensamento dominante no universo conversador é: toda violência é justificável, desde que não atinja pessoas que eu amo e que atinja, com muita intensidade, aqueles que não merecem minha preocupação.

De Blumenau, em Santa Catarina, mais um caso daqueles muitos que nos tiram o ar: um homem, acompanhado pela filha de dois anos, resolveu esfaquear até a morte um rapaz em situação de rua que tentou lhe vender paçocas. Assim que o caso foi divulgado, surgiram diversas fake news que tentavam transformar o assassino em herói por ter matado um “drogado” que incomodava as pessoas na rua. No fim, de acordo com a versões das autoridades catarinenses, tratou-se de mais um caso incontrolável de ódio em que uma pessoa que, armada com uma faca em um momento de fúria, achou que tinha o direito de acabar com a vida de um homem marginalizado pela sociedade.

É ainda mais preocupante perceber que, na contramão da compaixão e da empatia, cada vez mais brasileiros sonham em ter a arma própria, trocando o desejo de uma moradia segura pela obsessão com instrumentos de violência. Se o Governo laçasse o programa “Minha Arma, Minha Vida”, seria um grande sucesso. Alguém duvida? Esse comportamento baseado no ódio, em medidas punitivas e na vingança é particularmente ainda mais surpreendente quando percebemos que ele provém de indivíduos que se autodenominam cristãos.

No Brasil, a maioria esmagadora das pessoas que cultuam a violência e uma sociedade cada vez menos livre, com direitos limitados para quem não segue determinada interpretação de textos religiosos, adoram afirmar que vivem e agem seguindo os conceitos do cristianismo. Quem navega delas redes sociais e estuda comportamentos no universo virtual percebe com facilidade que os perfis dos “odiadores profissionais”, que defendem o extermínio como forma corretiva, mesclam de maneira insana textos bíblicos e mensagens de ódio.

Diante dessa triste situação, é inevitável questionar: se tivessem oportunidades, essas pessoas matariam em defesa de seus ideais e visões de mundo? O culto ao ódio tem se mostrado tão enraizado em nossa sociedade que é inquietante imaginar as consequências caso a linha tênue entre a indignação, que até então pode ser considerada aceitável, e a barbárie continue sendo ultrapassada por aqueles que realmente enxergam na sociedade um espaço para atitudes violentas e soluções baseadas no punitivismo irracional.

Para combater o ódio que impera no Brasil, é urgente promovermos uma cultura de paz, diálogo e respeito ao próximo. Não devemos esquecer, também, do papel das redes sociais como potencializadoras da cultura da violência. São nelas que nascem e circulam histórias grotescas, fake news e mensagens que estimulam ações sanguinárias, potencializando a raiva que reina sem muitos empecilhos no país. Devemos projetar um futuro em que a compaixão e a empatia sejam os pilares da convivência, onde não haja espaço para o cultivo e justificação da violência.

É necessário reconhecer a gravidade do momento em que vivemos. O ódio que toma conta da população brasileira é uma enfermidade social que precisa ser combatida. Precisamos de medidas e ações imediatas. Somente por meio de um comprometimento coletivo e uma mudança profunda de valores poderemos resgatar a humanidade e construir uma sociedade mais justa, solidária e verdadeiramente digna.

(*) Eduardo Betinardi (@eduardobetinardi) é jornalista e pesquisador de comportamento em ambientes digitais

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